Se você for como a maioria das pessoas, provavelmente tem uma visão da língua inglesa como uma coisa só, um idioma invariável, que é usado igualmente por todo o globo – afinal, “se você souber inglês, poderá viajar pelo mundo todo tranquilamente”, dizem. Se você tiver alguma experiência com ele, deve estar agora mesmo pensando, “eu não, eu sei que o inglês varia de acordo com o país”, e, recenseando mentalmente as evidências dessa afirmação, dirá que americanos têm um sotaque diferente dos ingleses – talvez some à cota o australiano. Se você for professor de inglês, estará se lembrando das inúmeras vezes nas quais arrancou dos alunos expressões de surpresa e desânimo ao lhes revelar que não apenas o sotaque, mas as palavras mudam de lugar pra lugar.
O que assombra os aprendizes do idioma mundial é, na verdade, algo tão razoável que, ao invés de “meu Deus!”, deveria tira-lhes um “faz sentido”, afinal variações dentro de uma mesma língua existem desde sempre. Na nossa, por exemplo, temos algumas possibilidades para a palavra pão: aqui no interior de São Paulo, falamos filão ou pão francês, em outros lugares filão é fila grande; lá no Ceará, é carioquinha, mas os cariocas mesmo o chamam de pão de sal; Cacete e cacetinho, só no Rio Grande do Sul e em Portugal, respectivamente, e assim poderíamos seguir por todo o país. O espanto, então, não se justifica quando lidamos com as variações de um idioma tão amplamente difundido como o inglês.
Houve, nos Estados Unidos, um projeto ousado para coletar as variações do idioma dentro do país. Um mega dicionário que, entre o seu estado germinal e a sua primeira publicação, em 1985, teve um século de pesquisa e trabalho duro, no qual mais de 100 pesquisadores, armados com pilhas de questionários, entrevistaram cuidadosamente quase 3000 pessoas em cerca de 1000 comunidades criteriosamente selecionadas por todo o país. Desse empenho hercúleo surgiu o Dictionary of American Regional English, o DARE – homônimo perfeitamente justificado, como se verá a seguir.
Graças à corajosa equipe de linguistas, sabemos que há, só nos EUA, 79 maneiras de se falar libélula, 130 nomes para Carvalho e 176 para “montinho de poeira”. Esses são exemplos simples de um trabalho que coletou mais de 2 milhões de verbetes – de repente, o português não parece mais tão heterogêneo assim ao dar nomes aos pães.
Mas não são apenas as palavras que mudam, a pronúncia também muda. Um professor da Universidade de Michigan, Hans Kurath, traçou linhas imaginárias, chamadas isoglossas, que dividem o país por sotaques e variação vocabular. Trabalhando inicialmente apenas com os estados da metade leste dos EUA, teve ele um resultado de 4 grandes grupos: o nortista, o central, o sulista e o de Nova Inglaterra. O esforço generalizante logo se tornou insuficiente, e novas linhas precisaram ser desenhadas, o que o levou ao total de 18 regiões (confira as imagens).
Hans não incluiu o outro lado do país, mas outros o fizeram, e ainda que, ao seguir para o oeste dos EUA, as variações linguísticas vão gradualmente diminuindo, um resultado tímido e bastante abrangente não é menor do que o de 50 divisões. E sequer falamos da Inglaterra, Austrália, Escócia, Irlanda, África do Sul, Nova Zelândia e de tantos outros países que têm por idioma oficial – ou por lingua franca – o inglês.
Somente uma pessoa com o ouvido muito afiado, um grande conhecimento do idioma e tempo disponível para cruzar o mundo todo conversando com os locais seria capaz de distinguir claramente as diferenças entre os infindáveis sotaques da língua inglesa. No entanto, não é preciso tudo isso para apreciar os contrastes entre aqueles mais radicalmente diferentes. É o caso clássico do Americano X Britânico. Lá na Europa, os R’s em finais de sílabas são quase sempre omitidos, formando com a vogal anterior o famoso schwa /ə/ – algo mais ou menos próximo ao nosso ã pouco nasalado, como em “maçã”; na América, os T’s em sílabas fracas tendem a ser pronunciados como o nosso r no meio da palavra – como em aranha. Assim que better é, na América, “bérer” – força e caipirice no r final –; na Inglaterra, porém, é “bétã” – com um forte sopro no t, quase como em “tchau”. Mas coloque uma palavra que comece em sílaba na frente desse better e você verá o britânico pronunciar seu r final quase como um americano: better off vira“bétã róff”. Esse é o monstro embaixo da cama de todo estudante de inglês, é o Connected Speech, que faz os nativos juntarem, na fala, várias palavras e pronunciá-las como se fossem um só. Na verdade, é um filho dele, o intrusion, que é acrescentar um fonema que não estava lá para tornar a fala mais fluída e suave para as cordas vocais.
Como dizem, nada está tão ruim que não possa piorar. Se subirmos um pouco, de Londres a Liverpool, encontraremos um sotaque quase tão diferente que, sem as referências geográficas, julgaríamos ser de outro país. Lá, os ingleses produzem um som “chiado”, que muito lembra o ich alemão, e, acredite, subindo mais um pouco, até a Escócia, isso beira o indecifrável. Mas deixemos a fria Escócia quieta no seu lugar e vamos para o oeste, para a Irlanda. Na ilha Esmeralda, ninguém chia, o sotaque é seco, os R’s não são omitidos, como lá do outro lado do Mar da Irlanda, e algumas vogais mudam de som: o fonema /aɪ/ , por exemplo, tão comum em palavras como “I”, “fine”, “sign”, vira /əʊ/ – algo próximo ao nosso “ôu” – e assim, Ireland vira “ôirelend” e right vira “rôit”.
Antes de voltarmos aos EUA, façamos uma rápida ponte em Londres. Na capital do Reino Unido há 3 sotaques, digamos, oficiais: Received Pronounciantion – ou RP –, Cockney e Estuary. Desses, o mais difícil de se entender é o Cockney, falado inicialmente pelas classes mais baixas e, posteriormente, pela maioria das pessoas. Não se restringe a Londres somente, espalha-se pelas regiões sul e leste do país. Curiosamente, neste sotaque, alguns fonemas mais são omitidos. O h áspero, como em house e who? Não existe. É “áuse” e “ú”. Se esforçou muito para soltar aquele t com som quase de “tch” de water? Suma com ele! Um verdadeiro Cockney pronunciará no lugar um som gutural não identificado, parecido com o que fazemos quando engolimos a seco. Assim que water vira “uó’á”. O Estuary é uma mistura do Cockney com o RP, ele também omite os T’s mas somente às vezes some com os H’s. O RP é o sotaque padrão, clássico, típico dos noticiários e oficial da família real – também conhecido como Queen’s English. Não há omissão os H’s nem dos T’s. É um sotaque limpo, bastante claro e definido, mas é padrão e soa formal demais – tanto que até mesmo a realeza por vezes o deixa de lado. Quando usam o sotaque britânico, os filmes geralmente vão de RP.
Ingleses, escoceses e irlandeses, de modo geral, não esticam as palavras, não prolongam os fonemas e são bastante diretos na pronúncia. Muito diferente do que fazem os americanos em algumas regiões do país. O sotaque arrastado, exageradamente gutural, que parece não emendar um fonema ao outro, mas sim transformar um fonema em outro, como se toda a frase fosse um som único variando de frequência, é típico dos sulistas – os famosos Rednecks. Já na Califórnia, costa oeste dos EUA, falam esticando os sons finais das palavras, como se precisassem preencher o silêncio entre uma fala e outra. Porém, o californiano fala de maneira clara, destacada, tem um colorido em sua pronúncia, já os sulistas, não, estes parecem ter reduzido os extremos de grave e agudo dos fonemas a uma margem bem pequena, não articulam muito a boca, os sons ficam presos na garganta, de modo que é mais fácil entendê-los quando uma palavra sai mais aguda do que o “normal”.
As variações linguísticas do inglês têm características tão particulares que é possível identificar a origem de uma pessoa bastando apenas que ela pronuncie algumas poucas palavras bem selecionadas, tais como: cot, caught, cart, bomb, balm, oil, house, good e water. Canadenses, que possuem um sotaque que se confunde com o americano, se entregam em palavras como about e house – diriam eles “abõut” e “hõuse”, enquanto os americanos diriam “abáut” e “háuse”. No alfabeto, Z é “zii” na América, no Canadá, é “zéd”. Essas diferenças, como dito, são tão particulares que o linguista William Labov foi capaz de identificar a localização de um sujeito que fazia ligações ameaçadoras a uma companhia aérea americana baseado apenas no seu sotaque.
Embora tudo isso pareça muito impressionante – e eu não me pretendi a trazer em um artigo todos os sotaques atualmente existentes na língua inglesa –, há um século atrás era pior. Na época, o inglês americano se afastava tanto do britânico que cogitava-se dar-lhe um outro nome: inglês seria a língua falada na Inglaterra e no Reino Unido como um todo, americano seria o nome do idioma dos Estados Unidos. A alcunha não pegou e, provavelmente, com o advento da internet, a facilitação da comunicação entre os continentes e o aumento do intercâmbio cultural as duas variações do inglês voltaram a se aproximar – ao menos o bastante para não serem considerados dois idiomas distintos. Como amostra dessa radical separação que sofria o idioma à época, temos documentada a opinião de Cecil Chesterton, jornalista inglês, ex-combatente de guerra e irmão do grande escritor inglês G.K. Chesterton:
I defy any ordinary Englishman to say that that is the English Language or that he can find any intelligible meaning in it. Even a dictionary will be of no use to him. He must know the language colloquially or not at all…
No doubt it is easier for an Englishman to understand American than it would be for a Frenchman to do the same, just as it is easier for a German to understand Dutch than it would be for a Spaniard. But it does not make the American language identical with the English.
Cecil Chesterton já se referia extraoficialmente ao inglês americano por “American”. Um exagero? Talvez. Mas ainda assim isso atesta a favor da maior diferença entre os “idiomas” na época do que hoje. E embora a língua inglesa tenha agora uma casta enorme de variedades e uma quantidade gigantesca de vocabulário – o inglês é, sem dúvidas, a língua com o maior número de palavras que existe e já existiu – o clichê, a frase pronta com a qual comecei este texto, “se você souber inglês, poderá viajar pelo mundo todo tranquilamente.”, não deixa de ser verdadeira. Com todas essas diferenças e variedades, tanto na pronúncia quanto no vocabulário, há uma base, um núcleo comum, que se repete com alguma variação nos diversos cantos do mundo. Esse núcleo essencial é que faz do inglês o idioma global, o centro de troca entre as mais diversas culturas, e enquanto ele permanecer o mesmo, a língua inglesa permanecerá sendo o idioma do mundo.
I’ve already told you your text is fascinating and everyone who studies languages should read it. Not to agree or disagree with it is indeed a fact; but to keep in mind the gigantic capability of expression of this language that we Brazilians know so little. Anyway, just a reflection.
Thanks for such intelligent reading moment.
Thanks for your comment, Almicar. It’s really pleasing and motivating to read this. I hope to get back on track with the website soon.