Não há dúvidas de que Shakespeare é o maior escritor da língua inglesa e um dos maiores de toda a humanidade. Críticos, como Harold Bloom, exaltam o Bardo por ter mapeado poeticamente toda a diversidade dos sentimentos e conflitos humanos em suas peças – que somam o total de 37, mais sonetos, mais poemas! O universo shakespeariano é riquíssimo. Desde as peças históricas, com seus longos discursos, às grandes tragédias da maturidade, cujos nomes ressoam nos quatro cantos do mundo, pode-se passar muito bem, obrigado, só lendo o Bardo.
Da abundância de joias que compõe sua obra, surge um problema: por onde começar? Devo ler as peças em inglês ou em português? É necessário ler algum livro introdutório? Algum conhecimento prévio? São as respostas a essas perguntas que pretendo fornecer, neste artigo, ao aspirante a leitor de Shakespeare.
LER EM PORTUGUÊS OU EM INGLÊS?
Comecemos pela questão do “ler em inglês ou ler em português?”. É evidente que a experiência de ler obras literárias no original – especialmente a poesia – não se compara a de ler em traduções – digo isso com todo o respeito que tenho e devo aos bravos tradutores que ralaram e contorceram-se feitos condenados no ofício, “I am settled, and bend up each corporal agent to this terrible feat”, diriam. Mas para ler Shakespeare no original tem que ter comido algum feijão, do contrário trava-se muito, a leitura não flui e perde-se o prazer da experiência.
Os mais aventureiros, ainda que com pouco conhecimento de inglês, ousarão encarar o Bardo frente a frente, os mais despreocupados começarão com a ajudinha dos tradutores, como eu comecei. A decisão é sua, meça sua capacidade de compreender um trecho relativamente fácil e escolha seu caminho. Lanço abaixo o teste. Trata-se de um trecho de King John em que Constance expressa seu luto por seu filho morto:
Grief fills the room up of my absent child, Lies in his bed, walks up and down with me, Puts on his pretty looks, repeats his words, Remembers me of all his gracious parts, Stuffs out his vacant garments with his form; Then, have I reason to be fond of grief? Fare you well: had you such a loss as I, I could give better comfort than you do. I will not keep this form upon my head, When there is such disorder in my wit. O Lord! my boy, my Arthur, my fair son! My life, my joy, my food, my all the world! My widow-comfort, and my sorrows' cure!
Mais adiante neste artigo farei indicações para os que escolheram começar pelas traduções e para os que decidiram encarar logo o inglês elizabetano. Antes, vamos resolver a questão das “obras introdutórias”.
OBRAS INTRODUTÓRIAS
Adianto que tais obras não são obrigatórias. É perfeitamente possível compreender as peças lendo-as diretamente. No entanto, há um livrinho que ajuda – e muito – a ter uma noção de tudo. Na sua primeira leitura do Bardo, o objetivo deve ser compreender a história. Não se preocupe com interpretações sofisticadas, simbolismos ou sutilezas da psicologia humana. Apenas entenda o que aconteceu – na minha primeira leitura das peças, fiz resumos de todas elas conforme as lia, um exercício do qual não me arrependo.
Seu primeiro objetivo, então, deve ser compreender O QUE AS PEÇAS CONTAM. E é justamente esse o nome do livro introdutório que eu recomendo fortemente que você tenha aí do ladinho das peças. A autora, Bárbara Heliodora, foi a maior especialista brasileira em Shakespeare. Há traduções dela, aulas, vídeos no YouTube etc.. Aproveite tudo o que essa mulher escreveu e falou sobre Shakespeare. Quanto ao livro, você pode lê-lo inteiro na sequência ou ir lendo os capítulos de cada peça simultaneamente com a leitura da própria peça – tanto faz.
Há outros livros introdutórios, e outros nem tanto, mas, como disse, este artigo se propõe a munir o leitor iniciante do mínimo necessário para entrar no universo shakespeariano, e esse universo é constituído pelas palavras de Shakespeare, não pelas centenas de milhares de comentários feitos a ele. Portanto, nada de perder tempo com obras paralelas – futuramente escreverei outro artigo, como o título deste sugere, em que indicarei leituras para os mais “avançados”.
LER EM PORTUGUÊS
Quem quer ler o Bardo na língua de Camões está em boas mãos. Temos aqui no Brasil as traduções da Bárbara Heliodora e as da editora Companhia das Letras (Penguin) – por ora, eles só publicaram as peças Hamlet, Romeu e Julieta, Otelo, Rei Lear e Júlio Cesar, mas se continuarem com essa qualidade de traduções, têm tudo para lançarem uma das melhores traduções de Shakespeare em português no mundo todo.
Há também um sujeito heroico que traduziu tudo. Carlos Alberto Nunes. O mesmo sujeito que traduziu Ilíada, Odisseia, Eneida, Platão, Aristóteles – eu acho – e, se não bastasse, era médico nas horas vagas. Mas… “Your love deserves my thanks; but my desert unmeritable shuns your high request.”, a leitura de suas traduções pode ser penosa, sofrida, exigente. O leitor de primeira viagem, tímido e acuado, se vê perdido nas estruturas sintáticas, e desanima.
Com o CAN, quem quer o Bardo na língua de Camões ler, em boas mãos não está.
Com a Bárbara e os tradutores da Penguin, não é assim. A tradução é ao mesmo tempo acessível e de qualidade. Para um primeiro contato, são perfeitas.
Há ainda uma terceira opção acessível no mercado: a edição da José Aguilar. Três volumes com as obras completas, tudo em prosa. Foi por ela que comecei. Não a recomendo acima das outras. Não que a tradução seja ruim, mas perde-se muito por livrar-se do metro em troca da prosa – solução fácil, cá entre nós. E outras de Portugal podem ser boas, mas são difíceis de conseguir. Fiquemos com as de cá que bastam
LER EM INGLÊS
Eis que chegamos ao que interessa: ler o Bardo em suas próprias palavras. Não falta edição comentada das peças de Shakespeare, o problema é saber quais são adequadas para os leitores de acordo com a sua “experiência” no ramo.
Começo pelas edições Folger, é a melhor para uma primeira leitura: é barata, boa e acessível, tem na Amazon, tem na Estante Virtual, tem em Sebos – comprei Othelo por R$ 5,00 em São Paulo. Essas edições contam com o texto original numa página e vocabulário de apoio na outra – tudo em inglês, é claro. Têm também textos introdutórios, resumos das cenas, notas maiores ao final e um artigo crítico à peça.
São livrinhos pequenos – a versão econômica tem 10 x 17cm –, pra levar consigo a todo lugar, resistentes – meu Macbeth, coitado, que o diga! – e baratos. Não tem discussão, vai de Folger que não tem erro. É possível baixar uma versão gratuita desses livros no site da editora – clique aqui –, porém sem comentários e vocabulário de apoio, apenas o texto bruto.
Uma edição intermediária entre a Folger e as mais avançadas é a Yale Shakespeare. Quanto ao vocabulário de apoio e comentários, não é superior, porém é a única edição que encontrei que comenta a acentuação de versos que fogem do padrão shakespeariano do iambic pentameter (5 fortes por verso no ritmo fraco/ forte…) – falarei sobre os versos do Bardo em outro artigo, provavelmente. O leitor que quer ler as peças devidamente acentuadas terá nessa edição um bom apoio.
“Sad tidings bring I to you…”. Não é fácil encontrar em nossas terras as peças dessa editora, e creio que eles não publicaram todas. Não se apegue muito.
E as avançadas? Temos por top 2 Arden e Oxford. A Arden é impecável, magistral, com uma série de comentários para diretores, referências a outros comentaristas – o que me faz querer comprá-los todos –, e muito texto introdutório. Sempre que tenho uma dúvida não resolvida pelas edições anteriores, corro pra Arden, a resposta está lá. A Oxford não fica atrás. Tem muito vocabulário, textos de apoio e quando diverge da Arden em algo, me parece mais certeira – embora esta seja superior, na minha humilde opinião.
Não tenho muito o que dizer sobre outras edições, como a Norton Shakespeare e a Cambridge, também aclamadas e recomendadas, pois não as explorei o bastante. Tenho algo da Cambridge aqui, já dei umas espiadas por cima. Apesar de boa, não me parece fornecer nada que a dupla anterior não forneça – mas, como disse, ainda não a explorei decentemente. A Norton é um sonho de consumo – estou aceitando presentes –, se trata de um monstro de 3500 páginas, volume único, com todas as peças. O preço? Na última vez que consultei tinha passado dos R$700,00. Só sei que é boa e que não a tenho.
Tendo a edição de sua escolha em mãos, agora você pode começar. Pode? Bom, um dicionário é de grande ajuda. E também isso existe, um dicionário de Shakespeare. Se trata do “Shakespeare’s Words”, de David e Ben Crystal. Compre-o ou acesse-o no site – clique aqui. O meu volume, já abatido de tantas batalhas, está sempre ao meu lado nas leituras mais sérias e nunca me deixa na mão. Se a palavra não estiver lá é porque Shakespeare a está usando com o mesmo sentido que ela tem hoje.
Além do léxico, esse salva-vidas ainda tem resumo das peças, tabelas de pronomes, moedas, tempos verbais, expressões, alguns advérbios especiais, aplicações de functional shift e mais e mais e mais. Um esforço nobre e louvável, pelo qual nós agradecemos, “Thy deeds […] Hath won the greatest favour of the commons […]”.
Um último conselho quanto às edições: se for ler em inglês, tenha uma – ou duas – tradução ao lado para tirar dúvidas.
POR ONDE COMEÇAR?
Por último, vamos à sequência. A resposta a isso é simples: nenhuma. Comece pela que mais te interessar. Você pode dar uma lida em resumos na internet ou no livro da Bárbara para ver qual peça desperta mais o seu interesse. Até as peças históricas, que possuem uma sequência, podem ser lidas aleatoriamente, são independentes – mesmo Henrique VI e suas partes. No entanto, deixarei uma sugestão:
Julius Caesar
O complô que assassinou o grande César ocupa na obra de Shakespeare uma posição interessante, é uma peça transitória. Depois de escrever várias peças históricas, nas quais treinava o domínio da arte, Shakespeare faz a transição para a tragédia em Julius Caesar. Os dramas históricos contam período da Guerra das Rosas e, apesar de ser ficção, têm forte base histórica. E quem lê as peças mais famosas, estranha quando pega um Ricardo III.
Em Julius Caesar, Shakespeare entra de cabeça no estilo que viria a ser o de Hamlet, Othelo, Macbeth e King Lear. A presença do sobrenatural, antes retraído, agora é gritante:
A lioness hath whelped in the streets, And graves have yawned and yielded up their dead. Fierce fiery warriors fought upon the clouds In ranks and squadrons and right form of war, Which drizzled blood upon the Capitol. The noise of battle hurtled in the air, Horses did neigh, and dying men did groan, And ghosts did shriek and squeal about the streets.
Cavaleiros de fogo combatendo no céu, as tumbam que cospem os mortos para fora, chuva de sangue no Capitólio. Tudo isso pressagiando a morte de César que, depois, aparece em fantasma para Brutus:
GHOST Thy evil spirit, Brutus BRUTUS Why com’st thou? GHOST To tell thee thou shalt see me at Philippi. BRUTUS Well, then I shall see thee again? GHOST Well, then I shall see thee again? BRUTUS Why, I will see thee at Philippi, then. [Ghost exits] Now I have taken heart, thou vanishest. Ill spirit, I would hold more talk with thee.—
No entanto, a peça mantém elementos históricos, como os conspiradores, o assassinato, as guerras e até mesmo a fala de Lucilius quando é capturado, que foi tirada de “A Vida de Brutus” de Plutarco. Compare.
Plutarco:
Antonius, I dare assure thee, that no Enemy have taken, nor shall take Marcus Brutus alive: I beseech God keep him rom that fortune. For wheresoever he be found, alive or dead, he will be found like himself.
Agora, o Bardo:
I dare assure thee, that no enemy Shall ever take alive the noble Brutus: The gods defend him from so great a shame, When you do find him, or alive, or dead, He will be found like Brutus, like himself.
Imagino como isso deve ter soado familiar para um inglês contemporâneo de Shakespeare, formado numa das Grammar Schools da época, instruído no latim e na cultura latina, “How well resembles it the prime of youth”, diria ele.
Julius Caesar é a minha indicação. Mas não foi a primeira que li em inglês. Comecei lendo o Bardo pelas traduções e, num primeiro contato com as peças, gostei muito de Macbeth e decidi que seria a minha primeira. Não me arrependo, ela continua sendo a minha favorita e aprendi a ler Shakespeare no original por meio dela – ainda a leio e em breve escreverei um artigo com as minhas impressões e opinião.
Antes de encerrar, gostaria de deixar um agradecimento especial ao Fernando Simões, onde quer que ele esteja neste mundão internético, que foi quem me apresentou a maioria dessas edições que citei aqui. Se não fosse ele, não sei se as teria descoberto, talvez depois de muito sofrimento. E outro agradecimento ao falecido Shakespeare Forum, onde encontrei pessoas de todo o canto do mundo envolvidas com as obras do Bardo, atores, diretores, produtores, roteiristas e simples leitores, como eu, as quais me ajudaram imensamente. Meus sinceros agradecimentos nas palavras do jovem Hamlet:
“Beggar that I am, I am even poor in thanks; but I thank you, and sure, dear friends, my thanks are too dear a halfpenny.”